É difícil para mim ouvir um trabalho novo de um cantor-compositor ou de um intérprete de música popular sem compará-lo com os anteriores. Tendo a gostar mais dos primeiros discos. É assim, por exemplo, com Chico César, Lenine e Zeca Baleiro. Apesar de adorar suas composições, suas interpretações e, no geral, o resultado das gravações, considero as obras do início da carreira mais inspiradoras, com letras e melodias mais interessantes. No caso de Adriana Calcanhotto, cujo novo lançamento vou comentar brevemente aqui, considero seus melhores álbuns o Senhas (1992), o A Fábrica do Poema (1994) e Marítimo (1998), os quais ouço com prazer de cabo a rabo. Outro álbum que merece uma menção honrosa é o Público (2000). Depois deles e com exceção do anterior Enguiço (1990), já há faixas que pulo durante a audição.
No entanto, o disco Margem, lançado em 2019, capturou-me. Confesso que não imediatamente, mas a persistência na audição me fez perceber a beleza contida no álbum. A única canção que havia me conquistado de chofre foi "Era para ser". Linda e melancólica, à altura de suas melhores composições, como "Metade" de A Fábrica do Poema, e "Cantada", do álbum homônimo de 2002. "Os ilhéus" também é uma canção bonita e muito interessante. Por sua vez, a bela melodia de"Tua" nos remete a outras composições de Marítimo, especialmente pela semelhança entre o verso "Dentro da noite voraz" e o título do livro de Ferreira Gullar, aproveitado na canção "Vambora". Gostei muito dos arranjos da faixa "O príncipe das marés". Já "Ogunté" me pareceu estranha e familiar ao mesmo tempo. Pareceu-me suscitar uma atmosfera ritualística, como se melodia e letra fizessem parte da revelação de algum sagrado segredo aos iniciados. Igualmente me levou a associá-la a "Remix Século XX", de Público, e "Jornal de Serviço", de Cantada. Por fim, destaco a faixa "Dessa vez". Enfim, fico feliz de ter parado para degustar mais uma vez Adriana Calcanhotto. É preciso começá-la, degluti-la, mastigá-la, é preciso lamber-lhe a língua.

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